Como é que os portugueses olham para a balança
9 de Novembro, 2021
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Como é que os portugueses olham para a balança

As conclusões da sondagem sobre a perceção dos portugueses em relação à obesidade são claras: existe falta de literacia em saúde, dificuldade no acesso ao tratamento médico e um problema de discriminação. Mas os resultados são ainda mais preocupantes, desde logo, pela desvalorização da gravidade da doença que parece existir entre os inquiridos, incluindo pessoas com excesso de peso ou obesidade. Os dados mostram que 75% dos obesos não reconhecem o seu real estado clínico e que apenas 22% o identificam corretamente.

A endocrinologista Paula Freitas analisa estes números com particular interesse, porque, assinala, corroboram outros estudos sobre perceção da imagem corporal, que é muito diferente em homens e mulheres. “Alguns estudos mostram que os homens percecionam que têm um peso menor do que o real e que não têm excesso de peso ou obesidade, mas que são ‘musculados’”, observa. Em sentido contrário, “é frequente encontrar mulheres que são normoponderais [dentro do peso recomendado] e que se veem como tendo excesso de peso”. Esta desconexão com a realidade do corpo leva a um agravamento do estado clínico e potencia “todas as patologias associadas, como metabólicas, diabetes, hipertensão, cardiovasculares ou cancros”.

Carlos Oliveira, presidente da Associação de Doentes Obesos e Ex-Obesos de Portugal (ADEXO), alerta que estas pessoas “não são informadas pela maioria dos médicos de família” relativamente ao seu peso. Na verdade, a sondagem revela que quase metade dos inquiridos com excesso de peso (42%) admite nunca ter abordado este assunto com o seu médico. Entre obesos, os números descem para dois em cada 10 obesos que não procuram ajuda clínica. “Além disto, temos muitos médicos de família que têm à sua frente um doente com obesidade e não o motivam a tratar-se nem o enviam para centros de tratamento acreditados”, critica o responsável da organização, que pede mais formação especializada para estes profissionais. “Muitas vezes estão apenas focados no tratamento das complicações da obesidade, sem tratarem o problema de base que causa essas comorbilidades”, complementa Paula Freitas.

Este é igualmente um sinal de que existem lacunas na literacia em saúde, tanto na população em geral como entre a comunidade médica. A falta de conhecimento motiva que, por exemplo, apenas 2% dos indivíduos considerem a obesidade como uma das doenças mais preocupantes. “Este dado é muito alarmante”, lamenta a endocrinologista. A também presidente da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade (SPEO) acredita ser preciso mostrar aos cidadãos que, “ao prevenir e tratar, diminuímos de forma significativa a ocorrência de outras patologias”. Apesar deste aparente menosprezo, uma larga maioria das pessoas associa a maleita a um maior risco de morte prematura (93%) e, de forma menos expressiva, ao desenvolvimento de outras doenças (62%).

DIFICULDADE NO TRATAMENTO

Um dos maiores obstáculos identificados pelos especialistas no combate à obesidade prende-se com a dificuldade de acesso dos doentes aos tratamentos disponíveis. É importante perceber que existem duas formas de o fazer — por via de intervenção cirúrgica, para pessoas com um índice de massa corporal (IMC) a partir de 35 e uma comorbilidade associada, ou através de medicamentos, se o IMC for inferior. Se é verdade que a componente cirúrgica é totalmente gratuita para todos os utentes, o mesmo não acontece com a prescrição de fármacos, cujo valor mensal ronda os €250 e não tem qualquer comparticipação do Estado. “O problema do acesso é grave, porque a obesidade é mais prevalente nas classes mais desfavorecidas, o que impossibilita o tratamento para quem mais precisa”, enquadra a endocrinologista. O presidente da ADEXO acompanha a análise e completa: “O custo dos medicamentos é efetivamente um fator de desistência.” E um desafio a endereçar.

O estudo que avaliou a opinião dos portugueses sobre este tema não deixa dúvidas sobre a realidade nacional. Para 71% dos inquiridos, o acesso aos tratamentos é difícil ou muito difícil, sendo que o elevado custo é a principal razão apontada. Ainda assim, oito em cada 10 pessoas (81%) defendem que estes medicamentos devem ser comparticipados pelo Estado e apenas 5% consideram que não. “Isto reforça a necessidade de termos um país mais justo e com equidade no acesso a consultas e a tratamentos”, afirma Paula Freitas.

A falta de comparticipação pública torna-se mais difícil de compreender quando analisamos o impacto financeiro da obesidade no sistema nacional de saúde, avaliado em cerca de €1,2 mil milhões num estudo recentemente apresentado pela professora Margarida Borges, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. “É um valor muito expressivo e que nos dá ideia da magnitude desta verdadeira epidemia”, considerou durante a apresentação das suas conclusões, no final de outubro.

ESTIGMA É REAL E COMUM

Mais de um quarto das pessoas com excesso de peso ou obesidade dizem ter sido vítimas de discriminação em algum momento da vida, nomeadamente em escolas (54%), na rua (52%), no local de trabalho (51%), na família (39%) e até entre amigos (34%). Mas há, no entanto, outros sinais que indicam que esta parte da população continua a ter menos oportunidades em várias vertentes da sua vida. A maioria das pessoas reconhece que esta desigualdade acontece no emprego, em funções de atendimento ao público, na vida social e no acesso a seguros de saúde e de vida. “Muitas vezes, as pessoas com obesidade são consideradas menos capazes, menos produtivas e nem sempre têm acesso ao emprego, a seguros de saúde ou seguro para comprar uma casa”, diz Paula Freitas.

Carlos Oliveira confirma que “estes são números reais” que tem procurado combater através da associação que dirige e afirma que, embora o estigma tenha diminuído, “continua a ser um problema grave que estas pessoas enfrentam”. Este é um dos cinco eixos prioritários identificados pelo movimento Recalibrar a Balança, criado por organizações como a ADEXO e a SPEO, que tem vindo a pedir uma resposta eficaz e socialmente justa para a epidemia de obesidade em Portugal.

de 2021. O universo foi constituído pelo conjunto de indivíduos residentes em Portugal continental com 18 e mais anos e acesso à internet. Foram realizadas 1002 entrevistas, com uma distribuição proporcional à população. A margem de erro para o total da amostra obtida é de ± 3,1 pp para um intervalo de confiança de 95%.

Textos originalmente publicados no Expresso de 6 de novembro de 2021

Fonte: Expresso